O setor elétrico na transição para o baixo carbono

É consenso que a eletrificação com matriz energética limpa é o caminho fundamental e inevitável na transição ao baixo carbono. O último World Energy Outlook da prestigiosa Internacional Energy Agency (IEA), recentemente publicado, confirma isso com números quase inacreditáveis. Segundo a IEA, a eletricidade deverá passar de 10% da oferta mundial de energia em 2021 para 40% em 2030 e 70% em 2050.

Esse choque se dará com a oferta de renováveis, cujo crescimento de capacidade anual quadruplicará – de 290 GW para 1200 GW por ano – entre 2021 e 2030, e a transformação tecnológica do setor elétrico o tornará o primeiro setor da economia mundial a atingir a neutralidade de carbono.

É consenso também que, do ponto de vista da geração, este passo será mais simples para o Brasil que – apesar de haver se movido na última década na direção contrária, aumentando a participação de não renováveis – já possui matriz elétrica com 82% de renováveis, muito acima da média mundial de 27%.

Brasil poderá ser o país de menor custo de produção de hidrogênio verde no mundo e manter liderança competitiva.

Entretanto, isso não quer dizer que o Setor Elétrico Brasileiro (SEB) não vá se transformar como o do mundo e enfrentar sérios desafios durante a transição ao baixo carbono. Ao contrário. Exatamente porque o país tem abundantes fontes naturais de energia renovável, o SEB deve passar por grande transformação na próxima década. Isso deverá ocorrer pela simples operação das forças de mercado que já impulsionam a descarbonização em escala global, provocando a expansão da capacidade de geração de energia renovável de forma cada vez mais barata e o crescimento da produção associada de hidrogênio verde.

A provável grande expansão da geração limpa no Brasil é evidente pelo
lado da oferta. Como apontado pelo Plano Decenal de Energia 2050, o
potencial de produção de energia renovável no Brasil pode ser igual a 17
vezes a demanda estimada até 2050. Apenas como um exemplo, se a
demanda total por energia elétrica dobrasse nos próximos 20 anos (o que implica uma taxa de crescimento do PIB de cerca de 3.5% ao ano) sem nenhum ganho de eficiência, seria necessário construir pouco mais do que 150 GW de capacidade de geração. Somente as energias eólica e solar tem potencial várias vezes maior que isso. E ainda temos a crescente oferta eficiente de usinas de biomassa.

Em um mundo cada vez mais sedento por produtos de baixa pegada de carbono, haverá demanda para este grande aumento da produção de
energia verde para a produção de hidrogênio, o petróleo do futuro. Em 2030, de acordo com a Bloomberg, o Brasil poderá ser o país de menor custo de produção de hidrogênio verde no mundo e manterá a liderança competitiva até, no mínimo, 2050.

O destino desse hidrogênio será duplo. Parte será produzido perto de portos para exportação em formas de produção de baixo custo de produção e transporte reconvertíveis em hidrogênio no porto de destino. Outra parte será destinada a grandes projetos para o mercado nacional, usando o hidrogênio como insumo energético e/ou diretamente nos processos de produção de enorme importância para o crescimento econômico e para o comércio exterior do Brasil.

A rede de transmissão deverá ser modificada. Como o hidrogênio ainda é um produto de logística difícil, a energia elétrica limpa deverá ser suprida no ponto de fabricação do gás, demandando a construção de novas linhas de transmissão de alta voltagem dedicadas para atender grandes cargas no ponto de uso. Também a produção eólica offshore exigirá a construção de mais linhas de alta voltagem ligadas aos pontos de geração no litoral.

As mudanças provocadas pela expansão de geração limpa eficiente devem também aprofundar tendências recentes, continuando a exigir rápida adaptação do sistema elétrico. O novo ambiente de progressiva liberdade de mercado desde a privatização, permitiu forte crescimento da energia eólica, principalmente nas regiões Nordeste e Sul, aumentando a importância dessa geração intermitente para o atendimento do mercado.

Expandiu-se também a aplicação de tecnologia de informação no controle e eficiência do sistema. Exemplo marcante disso foi a grande expansão da geração solar de pequeno porte com nova regulação permitindo ao consumidor brasileiro gerar sua própria energia elétrica a partir de fontes renováveis e fornecer o excedente para a rede de distribuição de sua localidade.

O planejamento e a operação, tradicionalmente focado na quantidade gerada e consumida no sistema centralizado, terá sua complexidade ampliada com a entrada do “prosumidor”,o que requer redes de transporte mais modernas incluindo características como bidirecionalidade, flexibilidade, digitalização e automatização.

Neste contexto, a gestão do sistema planejado pelos reguladores do início do século – um sistema hidrotérmico com ênfase na hidroeletricidade com as térmicas operando de forma complementar no grid nacional interligado – com as usinas hidrelétricas despachadas em função das condições hidrológicas vigentes, terá que ser modificada. A gestão das hidrelétricas e das outras fontes térmicas de energia firme terá que se voltar crescentemente para a estabilização da oferta intermitente das novas fontes “verdes” que suprirão a maior parte do crescimento da oferta de eletricidade no SEB.

Em resumo, o Brasil será parte importante da transformação do sistema energético global e terá que se preparar para isso. O desafio será, como em todo mundo, rever o modelo regulatório para prover segurança de suprimento e modicidade tarifária, enquanto descarbonizamos o SEB e, principalmente, expandimos e modernizamos a rede para tirar vantagem de nossa eficiência relativa na produção de energia limpa.

Mas no Brasil a transição oferecerá também uma oportunidade única de crescimento com distribuição de renda pelo desenvolvimento que provocará na região Nordeste, onde por seus recursos de energias eólica e solar, se localizará o centro desta nova revolução.

Amanda Schutze é doutora em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Coordenadora de Políticas Públicas da área de Energia do Climate Policy Initiative (CPI/PUC-Rio).

Winston Fritsch é PhD em Economia pela Universidade de Cambridge, ex-Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (governo Fernando Henrique Cardoso) e Senior Advisor do Climate Policy Initiative (CPI/PUC-Rio).

Artigo originalmente publicado no Valor Econômico no dia 23/11/2022 aqui.

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