O Brasil, o clima e a China

A política multilateral do clima tem como arcabouço regulatório o Acordo-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC na sigla em inglês, mais usada), cuja arena mais visível são as hoje gigantescas Conferências das Partes, as COPs, realizadas no último trimestre de cada ano. Este arcabouço, como todas as grandes iniciativas multilaterais, cresce em influência quando há liderança poderosa e alinhamento de interesses que permitem superar os inevitáveis conflitos de um jogo de muitos agentes. Murcham quando desaparecem esses combustíveis, que são muitas vezes produto de uma conjuntura que se transforma historicamente.

A UNFCCC não foge a essa regra. O período de sua gênese vai da histórica conferência do Rio, em 1992, onde foi criada, à COP de Kyoto, em 1997. Constituiu-se um secretariado permanente em Bonn e, em Kyoto, votou-se o protocolo definindo compromissos de redução de emissões, contendo o inovador Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) que permitia aos países ricos atingirem seus compromissos comprando reduções de carbono causadas por projetos de efetivo impacto em países em desenvolvimento. Este sistema entrou em vigor em 2005, ao mesmo tempo em que se lançava o esquema europeu de comércio de carbono (EU ETS), contendo compromissos rígidos de emissões para empresas de certos setores permitindo o uso dos créditos de captura de carbono dos projetos do MDL, criando uma âncora de preços para esses projetos.

A viagem de Lula à China pode lançar os alicerces de uma aliança estratégica na área do clima, baseada em interesses nacionais convergentes neste tema, que dará ao presidente brasileiro a oportunidade de um début de enorme impacto.

O Protocolo de Kyoto baseava-se no conceito originário da UNFCCC de que os países pobres deveriam ter tratamento isento de compromissos, e as obrigações de ajuste deveriam recair apenas sobre os países ricos, historicamente responsáveis pelo grosso do CO2 atmosférico. Entretanto, logo após a virada do século, as emissões dos países ricos se estabilizam e as da China explodem, tornando-a rapidamente o maior emissor do mundo. Além disso, os volumes de emissão do “resto do mundo onde estão grandes economias menos desenvolvidas, como o Brasil, crescem rápido e também ultrapassam os dos EUA.

Como consequência, a exclusão da responsabilidade dos países mais pobres passou a ser um problema fundamental de concepção do acordo. Neste contexto, o governo dos EUA, que negociara com vigor e assinara o Protocolo de Kyoto, acabou por não conseguir que o Congresso o ratificasse, desferindo um primeiro golpe à credibilidade do MDL. O segundo golpe veio com o colapso da referência de preço de mercado europeu, na crise do EU ETS causada pela queda de emissões com a queda abrupta da demanda na crise europeia de 2009–10. Do pico de US$ 20 por tonelada de CO2 antes da crise, o preço caiu a menos de US$ 3 em fins de 2012, quando expirou o protocolo sem a adesão americana, tornando inviável a quase totalidade dos projetos.

O fim do MDL foi desastroso para países que se dedicaram a desenvolver projetos de efetiva captura de carbono usando o MDL, como a China que chegou a gerar cerca de 60% deles, e afetaram muito Índia, Brasil e Coreia. Juntos, estes países geraram cerca de 90% dos mais de 4.600 projetos pioneiros de captura efetiva de CO2 até 2012, quando o mecanismo foi interrompido. Ainda pior, lançou a própria UNFCCC em um período de descrédito por não conter o avanço das emissões.

Entretanto, o crescente consenso científico sobre os riscos de trajetórias perigosas de emissão global provocou um renascimento da ambição política multilateral sobre a questão do clima que primeiro desaguou no Acordo de Paris em 2015, onde se corrige o erro de tratamento diferenciado de grandes países subdesenvolvidos e, depois, nas históricas decisões da COP de Glasgow, em 2021. Nesta, com ativismo sem precedentes do setor financeiro e corporativo dos países ricos, se retorna aos conceitos do MDL, agora rebatizado como MDS, regulando-se as bases para trocas de carbono entre países e renovando-se o interesse na UNFCCC.

Em particular, os mecanismos do Artigo 6 do Acordo de Paris, aprovados em Glasgow e agora sendo regulados, abrem enormes perspectivas de colaboração bilateral entre países com complementaridades como Brasil e China, onde o primeiro tem grande vantagem competitiva em projetos sequestradores de carbono, cujos créditos podem ser usados, sob certas condições, para compensar parte importante dos compromissos nacionais de redução de emissões definidas pelos países com grande dificuldade estrutural de cumprirem seus compromissos climáticos sem o uso de compensações, como a China.

O novo governo brasileiro claramente demonstra ver no tema do clima uma prioridade, mas ainda se organiza internamente para estruturar os recursos humanos, instrumentos e mecanismos de regulação e coordenação para uma política que até hoje foi apenas esboçada, o que não se faz rapidamente. As prioridades internas parecem claras. A defesa da Amazonia na direção do desmatamento zero em 2030, especialmente em sua enorme área de terras públicas e não atribuídas, deve ser prioridade máxima para garantir o cumprimento de nossas metas climáticas. Como também é fundamental o desenho de um tripé de instrumentos de incentivos ao investimento em projetos de transição ao baixo carbono, formado por uma política abrangente de precificação de carbono, mecanismos especiais de financiamento e incentivos fiscais temporários.

Mas a fronteira estratégica é a arena multilateral. É necessário retomar o protagonismo nas negociações do clima, onde serão criadas as regras do jogo do potencialmente gigantesco comércio internacional de carbono e onde o Brasil, apesar da desmoralização criada pelo desinteresse do último governo, ainda tem cacife diplomático, especialmente na diplomacia multilateral. De fato, esta é uma grande oportunidade que a diplomacia brasileira tem hoje de contribuir substantivamente para a solução de um grande problema global, de forma alinhada ao interesse estratégico nacional. E, como a diplomacia não se faz num vácuo, é necessário que a ação diplomática seja vista como respaldada politicamente pelo Congresso como ação de Estado e coordenada com os órgãos envolvidos na política de transição.

E devemos agir também bilateralmente, pois sob o arcabouço das novas regras multilaterais moram grandes oportunidades. Nesse sentido, a viagem de Lula à China – se bem-preparada, sem antecipar metas não fundamentadas ou objetivos irrealistas – pode lançar os alicerces de uma aliança estratégica na área do clima, baseada em interesses nacionais convergentes neste tema, que dará ao Presidente a oportunidade de um début de enorme impacto. Uma espécie de pênalti aos cinco minutos, neste jogo de décadas e que apenas começou.

Winston Fritsch é empresário, senior advisor do CPI (Climate Policy Initiative) e Conselheiro Emérito do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais). Foi Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda durante o Plano Real.

Artigo originalmente publicado no Valor Econômico no dia 10/04/2023 aqui.

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