O renascimento dos mercados de carbono nos últimos anos vem confirmando a importância da precificação das emissões para uma transição mais rápida e eficiente à neutralidade de carbono. O número e tamanho dos mercados regulados (ditos de compliance), embora ainda fragmentados regionalmente, continuam crescendo.
O pioneiro e já testado sistema da União Europeia é um exemplo de sucesso a ser seguido. Mesmo o chamado Mercado Voluntário de Carbono (MVC), totalmente autorregulado e ainda com importantes ineficiências e riscos de integridade dos créditos gerados, tem crescido ainda mais rapidamente e mostrado ter importância complementar, mas estratégica, para gerar créditos comercializáveis e manter o setor privado comprometido com metas de net zero na ausência de definição das regras internacionais criando o mercado prometido pelo Artigo 6 do Acordo de Paris em 2015.
É preciso regulação que aumente a atratividade de créditos de carbono para carteiras de fundos de investimento.
O governo do Brasil sempre teve reconhecido seu protagonismo na construção do arcabouço multilateral das políticas do clima como resultado de consistente ação na UNFCCC, do Rio a paris. Menos reconhecida, mas também muito importante, foi a açäo complementar de arrojados empreendedores e técnicos brasileiros na geração de grande número de projetos pioneiros que usam nossos ativos ambientais com real adicionalidade, reconhecidos no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), ainda no extinto regime de Kyoto e, mais recentemente, na geração de offsets para o MVC ainda em construção.
Mas o Brasil não implementou, ao contrário de outros países, um conjunto de ações coordenadas e permanentes que definam uma política nacional de transição, onde a criação de um mercado doméstico profundo de créditos de carbono é peça central. Mas avizinha-se uma nova era, onde o enorme potencial brasileiro de geração de projetos de impacto climático com real adicionalidade na redução das emissões permitiria transformar o país em grande gerador de offsets em escala global a médio prazo, a partir do salto dado com a histórica decisão de finalmente regular-se o Artigo 6 do Acordo de Paris na COP26, em 2021.
Em particular, a regulamentação dos Artigos 6.2 e 6.4 cria as bases de um novo e potencialmente enorme mercado de trocas internacionais voluntárias entre os signatários, permitindo que, sob certas condições, os resultados de mitigação excedentes àqueles necessários para cumprimento de seus compromissos nacionais sejam transferidos, através dos chamados ITMOs (Internationally Transferred Mitigation Outcomes) para países que não cumpriram suas metas, regulados por um mecanismo de certificação e validação dos créditos gerados a ser criado pela UNFCCC sob o novo Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável (MDS) que sucederia o MDL.
A aprovação do novo regime do Artigo 6 ensejou também a discussão e resolução do tratamento a ser dado ao valioso estoque de créditos brasileiros tramitados no MDL do Protocolo de Kyoto na transição ao MDS. O aproveitamento dessa oportunidade exige que o novo governo priorize o lançamento das bases de um potencialmente profundo mercado brasileiro de carbono nas novas bases definidas no âmbito da UNFCCC. Isso supõe encaminhar-se duas questões urgentes.
A primeira é temporária, e trata do aproveitamento de créditos registrados no passado, sob o regime do MDL. É necessário que o governo brasileiro coordene e harmonize o tratamento definitivo da transição do estoque desses créditos, que tiveram seus direitos no âmbito do Artigo 6 reconhecidos em Glasgow. A discussão sobre a transição desses créditos do MDL vai demandar uma posição firme do governo com respeito à sua qualidade e elegibilidade face às resoluções de Glasgow. Não pode haver dúvida de que esses créditos, cuja integridade foi validada e verificada pela UNFCCC, devem ser considerados o padrão-ouro dos créditos de carbono e, quanto a esse aspecto, superior, em princípio, aos créditos crescentemente transacionados hoje no MVC. E nem de que, de acordo com as resoluções de Glasgow, esses créditos emitidos sob o MDL têm valor, pois poderiam ser elegíveis para o cumprimento da primeira NDC brasileira (em 2025), ou transacionados tanto no mercado voluntário quanto em um eventual mercado regulado doméstico.
A segunda, mais permanente e estruturante, é a implementação de políticas que aproveitem a histórica oportunidade que o iminente regramento do Artigo 6 fornece para que países com o potencial de transformar recursos em ativos ambientais superando suas NDCs, como o Brasil, estimulem projetos de transição que gerem créditos de carbono negociáveis internacionalmente. Nesta questão, a ativa participação brasileira na definição dessas regras no âmbito multilateral deve ocorrer em paralelo à iniciativas internas criando obrigações e incentivos para desenvolver um mercado doméstico eficiente, profundo e com regras estáveis. Isto permitiria o uso desses “compliance credits” também como ativos negociáveis em volume crescente em um mercado regulado nacionalmente de forma consistente com os princípios de certificação e verificação do novo mecanismo do Artigo 6, e como instrumento de incentivo para atingir os objetivos da política climática do Brasil.
Com efeito, a construção de um novo regime de compliance nacional criando o Mercado Brasileiro de Carbono com regramento consistente com o novo regime de governança multilateral em construção deve ser a mais alta prioridade da política integrada de transição ao baixo carbono anunciada pelo novo governo brasileiro.
Isso exige, por um lado, ação diplomática na esfera multilateral para influenciar a definição de boas regras operacionais do Artigo 6.4 e, por outro a construção de um arcabouço regulatório dos mercados de carbono domésticos com um tripé formado por 1- um Sistema Brasileiro de Comercialização de Créditos de Carbono, aproveitando outras experiências exitosas de regimes de cap and trade, e projeto de lei já em estado avançado de discussão no Legislativo; 2- estímulos ao desenvolvimento de projetos de soluções baseadas na natureza e outros projetos com adicionalidade no mercado de compliance e, por último, mas não menos importante, 3- continuado apoio pelo governo de suporte para o crescimento e melhoria de qualidade do MVC.
Naturalmente, essas medidas teriam que ser apoiadas pela definição de instrumentos que estimulem projetos de transição que fortaleçam o mercado brasileiro de carbono, gerando ativos também negociáveis internacionalmente segundo as novas regras. Esses incentivos passam, pelo lado da oferta, por boa regulação setorial e criação de estímulos fiscais e de financiamento ao desenvolvimento de projetos com adicionalidade, como parte da nova política transversal de transição. E, do lado da demanda, além de criar obrigações de performance através de mecanismos domésticos de precificação de carbono, patrocinar regulação que aumente a atratividade de créditos de carbono para carteiras de fundos de investimento, criando um mercado profundo e líquido para estes ativos.
Winston Fritsch é empresário, senior advisor do CPI (Climate Policy Initiative) e Conselheiro Emérito do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais). Foi Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda durante o Plano Real.
Artigo originalmente publicado no Valor Econômico no dia 14/03/2023 aqui.
Construindo os mercados de carbono no Brasil was originally published in economialimpa on Medium, where people are continuing the conversation by highlighting and responding to this story.